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Travessia

  • Foto do escritor: Susan Duarte
    Susan Duarte
  • 16 de jun. de 2023
  • 4 min de leitura

Ir além-mar é mais poético do que simples.


É difícil deixar o que há de conhecido, construído, concluído, para trás. É difícil recomeçar, repensar, refazer, inovar, especialmente, quando achamos que já estava muito bom do jeito que estava. É impossível fazer caber um apartamento numa mala, um carro dentro de um avião, 300 livros, toalhas de banho fofinhas e jogos de lençol de 600 fios numa necessaire.

Simplesmente, não dá.

Não é à toa que os monges costumam passar 40 anos no Himalaia para exercitar o desapego, incorporando livremente suas qualidades à Consciência. Desapegar é difícil porque amamos os deuses do mundo, e não aqueles da alma. Desapegar das pessoas, dos nossos hábitos, de quem achamos que somos, dos ideais, do país, da língua-mãe, da zona de conforto, do conhecido, do familiar, das situações é fluir com o rio da vida e seus afluentes. Desapegar é abandonar o domínio conquistado e o sossego apreciado que somente o costume proporciona.

E pra quê tudo isso? Himalaia, desapego, liberdade?

O apego parece legal, confortável, mas só parece ser, porque não é - na real, ele é perigoso porque aprisiona, insidiosamente silencioso, feito a água que ferve aos poucos até matar o sapo dentro da panela - por inanição. Dele procedem todas as fontes de sofrimento humano. Por isso, entre as Nobres Verdades de Buda, lá está ele, em primeiro lugar, o apego. Desapegar liberta. E quem disse que todos estão preparados e disponíveis, na alma, para o voo? Em geral, é assim que acontece: passamos a vida dizendo que desejamos voar, quando, em verdade, temos uma preguiça existencial, quase inconsciente, de sair do ninho.


Desejamos o voo na mesma medida em que tememos o vazio logo após, o espaço aberto de simplesmente mergulhar e ficar sem saber o que vem a seguir. Para os controladores compulsivos, eu recomendo ficar em terra, chão firme, bem apegado, a tudo que é conhecido, seguro, e, por sua vez, sufocante.


Desapegar liberta porque permite o voo. É ali, neste instante, que a libertação acontece. Talvez nem seja preciso do Himalaia. Uma dose de loucura, cinco de vontade, quatro de atrevimento, e mais uma outra de disposição. Adicione 90 de desapego e, finalmente, salte, voe.

Aprendi a observar, a vagar. Aprendi o que toda criança precisa saber: que nenhum horizonte está tão longe que você não possa ir além dele. Beryl Markham

Já fazia um tempo que eu não voava. Nos dois sentidos mesmo, na vida e num avião. Dessa última vez, foi diferente. Mais precisamente inédito, por assim dizer. Pela primeira vez, não tive medo. Pela primeira vez, desapegar, voar, mergulhar sem saber, foi revigorante. Ali, comecei a incorporar o entendimento daquilo que os hindus denominam como a sabedoria da incerteza. Lá de cima, eu vi tudo bem pequenininho aqui embaixo, enquanto quem se agigantou aos meus olhos foi uma necessidade indolente de controle personificada no bom gigante nada amigo do apego. Ao descer do avião, decidi deixá-lo por lá, bem no alto, feito nuvem, para se desfazer, criando, assim, um novo espaço para a minha liberdade de Ser.


Acreditei por muito tempo que a sabedoria morava na certeza, naquilo que podia ser mensurado, controlado, previsto. Até que percebi que não. Os caminhos incertos são os mais sábios e certos porque permitem a manifestação do novo, a partir de um nível de consciência que a nossa mente egóica e controladora e apegada não é capaz de alcançar.

Ponte de Asnieres. Van Gogh, 1887.
Ponte de Asnieres. Van Gogh, 1887.
Para atravessar eu precisei desapegar.

De tudo. Acredite em mim, tudo. Durante a travessia, percebi que não tinha nada além de mim. Agora ainda percebo isso - só tenho a mim. O restante é barulho, é efêmero, é desculpa, é apego. A propriedade das coisas do mundo é mera ilusão. Ao desapegar, percebi que nada era meu, eram apenas itens emprestados à experiência que vivencio, sejam eles "meus" livros, "meu" país, "meu" apartamento ou "meu" urso de pelúcia.


Na sabedoria incerta que é a mais certa de todas as coisas, é nela que eu desejo voar, sobrevoar um novo mundo, revestida de uma nova consciência, mais leve, mais bonita, mais livre. Ter é maravilhoso, claro que é. Mas quando o ter passar a impeditivo de ser e fazer o que coração deseja, aí sim, já estamos capturados pelo véu de maya, cultuando os deuses do mundo, enquanto apequenamos a alma.


É somente depois de enfrentar o difícil que fica mais fácil. Depois de tamanho desapego, é cristalino perceber o que realmente é meu.

Só a vida me pertence.

E não vale a pena desperdiçá-la em meio a fósforos e fantasias de controle e apego. Após a travessia, há um novo mundo, um novo rio, um reino diferente a ser desbravado e aceito. Tudo é uma questão de dizer sim, se estou disposta a dar um efusivo sim à minha aventura, pois é somente assim que a jornada do herói começa.


Quem disse para queimar as pontes não sabia que elas são necessárias. Afinal, é através delas que atravessamos - de um hemisfério para outro, de um nível de consciência para o próximo, de uma prisão confortável para a liberdade do desconforto.


Não adianta se rebater. Quanto mais lutar para se soltar tanto mais enredado na linha se fica. Caso ainda se sinta preso às armadilhas mentais, emaranhamentos emocionais, apegos pessoais e ambientais, ilusoriamente impedido de atravessar, siga a regra de ouro:

A travessia só é feita por causa do amor.

Se não for por amor, do tipo genuíno, esquece.


Porque o amor, em si mesmo, é a força motriz da travessia.


Até sempre,

Susan Duarte

Ceo & Founder Zeitgeist iD | A sua marca no espírito da época.

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