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Quaresma

  • Foto do escritor: Susan Duarte
    Susan Duarte
  • 6 de abr. de 2023
  • 5 min de leitura

Quaresma é um tempo.


40 dias é o tempo de preparação para a Páscoa. Mas o que é a Páscoa? De modo simplista, é a ressurreição de Cristo.


Ressuscitar, porém, não é assim tão simples. A começar porque quem ressuscita deve, logicamente, antes, ter de viver e morrer. E quando a morte está em pauta, o ser humano só sabe disparar, feito Diabo que foge da cruz. Speak on the devil, no caso, nela, a cruz simboliza o ápice da perversidade humana - ou seria luciferiana? - na crucificação de Cristo. Jesus não só morreu. Ele morreu crucificado porque nós escolhemos Barrabás. E mesmo ele, Barrabás, não mereceria a cruz. A barbárie jamais deve ser justificada como justiça. Não é possível, afinal, corrigir um erro com outro ato errado - e ainda mais execrável do que o primeiro.


Quarenta dias permeados por quatro atos. Parece muito, mas a complexidade da tarefa assim exige.

Jesus em oração. Vince Pietrov, 2018.
Jesus em oração. Vince Pietrov, 2018.

Quaresma é tempo de quietude. O Carnaval e suas cores, alegrias e amores, músicas e ritmos, é uma festa popular que nos convida a viver. Quarta-feira, porém, é o enterro dos ossos. Se o lema do carnaval é solte suas feras, o início da quaresma é imperativo - recolha-se e olhe suas dores.


Quaresma é tempo de revisão. Dado o convite, o silêncio interior se instala. É momento de revisar. Usualmente, o exame do ano é feito em meados de dezembro, véspera de ano-novo. Eu não. Meu exame de consciência é aqui - no silêncio da quaresma. A via crucis tem 14 estações. No mínimo, 14 perguntas eu faço, procurando saber e sentir a cada estação. Quem tenho sido? O que tenho feito? Como tenho feito? Estou mais próxima ou mais distante do caminho da alma? A quem eu magoei? Será que fui magoada? Essas e outras questões evocam a subjetividade do ser à superfície. Aquilo que traz alegria, bem como aquilo que dói, são endereços confiáveis, quase sempre fidedignos, no exame da alma.


Quaresma é tempo de perdão. Feita a revisão, panorama geral traçado, é hora de colocar a casa psíquica em ordem. Não há instrumento para tal limpeza mais eficaz do que o perdão. Se perdoar o próximo é difícil, perdoar o distante e a si mesmo é ainda pior. A equação crística é ousada.

Pedro perguntou: Senhor, quantas vezes deverei perdoar a meu irmão quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?
Jesus respondeu: eu digo a você: não até sete, mas até setenta vezes sete. (Mateus, 18:21-22).

70 vezes 7. 490 vezes é o resultado da operação matemática. Na vida, 490 provavelmente ainda é um número simplório. A cor do tempo da quaresma é lilás. Lilás é a cor da transmutação, a alquimia da alma. Transmuta o que era dor, sofrimento e desalento em nova esperança. O maior desafio do alquimista - o elixir da juventude e a transformação de metal em ouro - é mais fácil do que a alquimia da alma, a transmutação do rancor de um coração humano e ferido em genuíno perdão.

Jean Jacques Rosseau dizia que a natureza do homem é ser essencialmente bom. Thomas Hobbes e seu Leviatã defendiam a face mais sombria. Para eles, indubitavelmente, o homem era o lobo do homem.

Homo homini lupus. Hobbes, 1651.

Eu não vou ao céu nem a terra. Fico no caminho do meio aristotélico, partidária otimista da noção crística.

Perdoai-os, Pai, porque eles não sabem o que fazem. Jesus

À exceção de patologias mentais, não acredito que o ser humano faça o mal, erre, condene, puramente por mal. Pessoas machucadas são instrumentos fáceis à ação luciferiana não porque são más, mas sim, em suma maioria, porque não sabem o que fazem. As pessoas que lhe feriram em 98% das vezes não queriam fazer isso. Apenas não sabiam o que estavam fazendo. Mesmo assim, tal evidência não é garantia de redenção. Eis aí o equilíbrio da vida: sabendo ou na ignorância, agindo de modo consciente ou inconsciente, o banquete de consequências sempre chega.

Todo mundo, mais cedo ou mais tarde, senta-se para um banquete de consequências. Louis Stevenson

No inglês, há outra pista para a natureza do ato de perdoar. O verbo perdoar (forgive) tem a mesma gênese do verbo esquecer (forget). Forgive e forget apontam que parte do perdão é também esquecer, deixar pra lá. Nesse instante, enquanto lê minhas palavras, é provável que tenha pensado: Não, nem pensar, não perdoo nem esqueço. Ela não sabe o que me fizeram! Pois é, eu não sei, mas sei que não perdoar é agarrar-se ao espinho, cravando-o ainda mais fundo; é tomar o veneno esperando que o outro morra. Não perdoar é condenar o Cristo que vive em nós, outra vez, à crucificação. E nessa cruz quem padece é você!

Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que outra pessoa morra. Shakespeare

No filme Thousand Words, As mil palavras, protagonizado por Eddie Murphy, Jack trapaceia em um acordo e em seguida descobre uma árvore em seu jardim. A cada nova palavra que ele pronuncia, uma nova folha cai. Na milésima folha, a profecia se realizará no desfecho da morte de Jack. Até que, diante das últimas 3 palavras, ele escolhe dizer: Eu te perdoo. O poder do perdão quebra a maldição desfazendo a profecia.


Perdoe. Não pelo outro, mas por sua causa. Seu coração merece um espinho a menos. Claro, a marca há de ficar. Estamos todos quebrados, dizia Hemingway, mas é assim que a luz entra. O amor divino cicatriza, preenche, renova limpa, cura e rega esse novo espaço, até que ali, floresçam novas sementes de esperança.


Quaresma é tempo de redenção. Encerrada a via crucis, Cristo entrega-se à Paixão e é crucificado. Destaco o movimento de entrega. A travessia da Paixão para a Compaixão é feita na ponte da entrega. Somente a entrega opera a libertação final, a nova ordem da casa psíquica, que agora, viceja e respira uma nova vida, num coração que bate purificado. O conselho de outro redentor, Buda, é explícito.

Use um espinho para remover um espinho, depois jogue fora os dois. Buda.

Até a ressurreição, no domingo, abençoado dia de renascer, ainda há tempo para jogar fora os espinhos. A redenção permite que a compaixão realize o renascimento da alma.


Enfim, a ressurreição. Eu avisei que ressuscitar não era assim tão simples, afinal. É o caminho da ressurreição que nos guiará ao amor puro. A jornada crística é a jornada humana. O arquétipo do redentor, representado pela figura do Cristo, não veio para nos salvar, mas sim e antes, para revelar a Verdade: é morrendo - em nossas misérias, vícios, julgamentos, crueldades e descrenças - que renascemos para a vida eterna.


Da Sexta da Paixão ao Domingo de Páscoa, a natureza vida-morte-vida se revela. Na Paixão, deixo que morra na cruz o que deve morrer. Na Páscoa, deixo renascer o que deve viver. Esse é o meu jeito de jogar fora os dois espinhos. Afinal, não há o que temer nem agarrar.

Agora permanecem estes três: a fé, a esperança e o amor. O maior deles, porém, é o amor. Coríntios 13:13

Porque Ele vive o amor prevalece.


Feliz Páscoa!


Até sempre,

Susan Duarte

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