'Pantanal' e Amor de Índio
- Susan Duarte

- 12 de mai. de 2022
- 6 min de leitura
Atualizado: 13 de mai. de 2022
A noite em que a globo sublimou a quarta parede.

Um triunfo da dramaturgia nacional, a atual novela das 9 da Globo é o remake moderno de uma história antiga. Seu cenário principal é considerado o menor bioma de nosso país, localizado entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Destaco que o Pantanal é menor apenas em extensão, já que deslumbra os olhos do espectador com tamanha riqueza, costume antigo, aliás, desse gigante pela própria natureza - o nosso Brasil. Seria quase um pleonasmo estilístico falar em Brasil, natureza, riqueza, visto que tudo no Planeta Terra nos abençoou em exuberância, graça, beleza.
Ré confessa, já começo por admitir: não sou grande entusiasta das novelas, mas certa cena capturou minha atenção. Refiro-me à primeira cena do capítulo da noite de 05 de maio de 2022, na qual o recém casal Jove&Juma experiencia as primeiras faíscas de um amor verdadeiro - esse tal fogo que arde sem se ver, não é, Camões?
A delicadeza da cena brincou com os daemons da perfeição em tudo, especialmente, em sua trilha sonora. A pureza da canção Amor de Índio, de Beto Guedes, agora expressa na voz de Gabriel Sater, num adagio envolvente, quase aveludado, deve ter feito até os deuses sorrirem. Justamente por isso, porque eu sorri feito os deuses ao testemunhar a Globo sublimar a quarta parede, escreverei o que percebi, em três tempos.
TEMPO DE REVISÃO
No núcleo central da novela, José Leôncio construiu um império enquanto fugia de suas sombras - o mistério do desaparecimento do pai, um casamento mal resolvido - ou seria mal terminado?-, um filho abandonado. Motivo virtuoso? Discutível. Nas batalhas que se escolhe enfrentar há virtude; daquelas que se escolhe fugir, porém, nunca há, por mais nobre que o motivo precedente seja. Percebi que, o personagem, enquanto expandia suas terras, estreitava sua alma.
Vinte e cinco anos depois, a volta do filho pródigo. Após a chegada de Jove, envelhecida a novidade, põe-se à mesa todas as cartas, em meio aos gritos de seus contrastes. Pai e filho diante de uma nova oportunidade - é tempo de revisão, num claro convite à melhoria, costume da vida, aliás, que sabe ser generosa, e (quase) sempre nos oferta uma segunda chance. Desprovido de compreensão, porém, tamanho contraste só gera atrito e inconsciência.
Não há futuro enquanto o passado não for consertado. Até o momento, o filho só consegue se comunicar com o avô, o Velho do Rio, papel representado por Osmar Prado, patrimônio imaterial da dramaturgia brasileira. Cabe ao pai e ao filho, a difícil tarefa de consertar o que foi, que já não é, mas ainda está ali, presente, doído, doendo, à espera de ser visto, passado a limpo, feito caderno mesmo, de próprio punho, no tinteiro da lucidez.
TEMPO DE AMOR
É sempre tempo de amar, e agora, é tempo de amor - de índio. Play na canção.
Premissa afirmativa
Tudo que move é sagrado.
Numa argumentação dedutiva, vale perguntar: e o que move o mundo, afinal? De acordo com a canção, o amor e o trabalho. Isso a divide em dois atos: no primeiro, explana que o amor é sagrado; no último, que o fruto do trabalho é mais que sagrado. Logo, o amor e o trabalho movem e, portanto, são sagrados. Raciocínio válido.
Ato 1 - O amor move, logo, é sagrado
E remove as montanhas com todo cuidado, meu amor.
Cada um de nós tem, no mínimo, uma montanha na vida pra chamar de sua. Gostando ou não, ninguém está aqui a passeio. No entanto, o verso adverte: há de se remover as montanhas - dificuldades, desafios, impeditivos, limitações de qualquer espécie - com todo cuidado. Parece que, como eu, Beto acredita que o jeito é mais eficaz do que a força.
Enquanto a chama arder, todo dia te ver passar.
A chama da vida, enquanto ele viver, escolherá estar ali, presente, a vê-la passar.
Pra quê? Para...
Tudo viver a teu lado/Com o arco da promessa no azul pintado pra durar
A vida é meio imperativa. Não nos dá a opção de escolher - nascemos e pronto. Mas nos dá o direito de escolher com quem viveremos essa vida que, a priori, não escolhemos viver. E tudo que se vive, desde os tempos de Eclesiastes, não há escapatória: é vivido debaixo do céu, nesse azul pintado pra durar.
A abelha fazendo o mel/Vale o tempo que não voou
A abelha deixou de voar; em compensação produziu o mel.
A estrela caiu do céu /O pedido que se pensou
A estrela até caiu do céu, mas só pra realizar o pedido que alguém pensou.
O destino que se cumpriu/De sentir seu calor e ser todo
A força do destino se cumpre e tudo se compensa.
Na trama da vida, há uma ordem por baixo de um todo aparentemente caótico. Há um propósito para tudo e um tempo para cada coisa debaixo do céu.
Todo dia é de viver para ser o que for/E ser todo
E todo dia nasceu pra ser vivido, seja o que for.
Ato 2 - O trabalho move, e seu fruto, é mais que sagrado
Se todo amor é sagrado/E o fruto do trabalho é mais que sagrado, meu amor
Um nexo causal de ligação - a ponte entre o movimento do amor para o trabalho.
A massa que faz o pão/Vale a luz do teu suor
O pão é metáfora da vida desde os primórdios dos tempos. O pão da vida, o pão da alma, o pão do céu. Só quem já sovou um pão com as mãos sabe o suor dispendido para tal. Mas vale a pena, pois o suor do trabalho é o que perpetua a vida e constitui as fibras da dignidade humana.
Lembra que o sono é sagrado/E alimenta de horizontes o tempo acordado de viver
Se trabalhar é sagrado, descansar também é. O mito antigo foi categórico: Deus trabalhou 6 dias e fez o mundo; descansou no sétimo. Nada como um dia após o outro e uma noite no meio. Essa última, a noite no meio, faz toda diferença. O sono, o tempo que se vive dormindo, é o que alimenta de horizontes (novos) o tempo que se vive acordado. Quem nunca foi dormir com um enigma, e de repente, numa preciosa noite no meio, acordou vislumbrando um novo horizonte no qual se avistava a solução? Não há presença consciente na estafa. Descansados, temos olhos para ver e ouvidos para ouvir a beleza e a sacralidade de tudo o que nos rodeia.
Interlúdio - O tempo move, logo, é sagrado
No inverno te proteger/No verão sair pra pescar/No outono te conhecer/Primavera poder gostar
As quatro estações demarcam a continuidade da vida, do correr da existência, da passagem do tempo. Tudo continua sempre em movimento. Observo que uma das principais angústias de nossa época é a busca por constantes, ceteris paribus, como se fosse possível controlar as inúmeras variáveis que compõem a vida. Caso você esteja à procura de uma certeza, em busca de uma causa perdida, fique com esta: a única constante da vida é o tempo - sempre em movimento, sempre passando.
No estio me derreter/Pra na chuva dançar e andar junto
Estio, ipsis litteris, é um período de grande calor. Em seu sentido figurado, porém, denota a idade madura, aquela em que tudo fica mais leve porque nós ficamos mais sábios. Todavia, para almejar esta senhora difícil, a sabedoria, é preciso derreter nossas próprias limitações e ignorâncias. Ao fim, é possível dançar ao frescor da chuva, e, finalmente, andar junto.
Conclusão
O destino que se cumpriu/De sentir seu calor e ser todo/Se todo amor é sagrado/Se todo amor é sagrado/Se todo amor é sagrado/Se todo amor é sagrado
Tudo que move é sagrado. E tudo permanece na sacralidade porque é.
Houve certo esvaziamento de sentido nestas palavras, amor e trabalho. A poesia de Beto, no entanto, retorna de 1978, a fim de nos recordar de que ambos os atos, amar e trabalhar, ainda têm um quê de sagrado, porque transformam, porque nos movem. Se tudo que move é sagrado, tudo que transforma também o é. Independente das mazelas de nossa época, 44 anos depois ainda amamos, ainda trabalhamos; somos todos, então, alquimistas de nossa própria realidade.
TEMPO DE TRAVESSIA
Se a vida imita a arte ou a arte imita a vida, eu não sei. Mas desconfio de que, na novela, é tempo de travessia. Juma atravessando da inocência para o conhecimento, da menina para mulher; Jove amadurecendo, da criança que julga ao homem que assume; José Leôncio se humanizando, de uma mente que só soube trabalhar a um coração que, tardiamente, aprende a respeitar - as pessoas e o ato de amá-las como são, pelo que são, e nada mais.
Adjacente a todos eles, gravita a presença misteriosa do Velho do Rio, arquétipo da senhora difícil, a sabedoria. Independente do que haverá na outra margem, o importante é a travessia. Empreendê-la é dolorido? Claro que é. Travessia é movimento; logo, atravessar, para além de dolorido, é sagrado. Do outro lado do rio, certamente, é bem mais bonito. Na outra margem, talvez, pai e filho possam sepultar suas diferenças, aproximar seus abismos, e andar juntos.
Pensando bem, se tudo o que move é sagrado, a vida é puro movimento.
E agora, José (Leôncio)?, indagaria Drummond.
Depois de águas tão turvas, o que haverá do outro lado do rio?, indagaria eu. Respostas para os próximos capítulos.
Enquanto isso,
- Attraversiamo!
Até sempre,
Susan Duarte
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POOL DE REFERÊNCIAS
Gigante pela própria natureza. Hino Nacional Brasileiro.
Fogo que arde sem se ver. Poema de Luis Vaz de Camões.
Daemons. Conceito de Eudaimonia de Aristóteles.
Canção Amor de Índio. Compositores Beto Guedes e Ronaldo Bastos. Álbum: Amor de Índio, 1978.
Um tempo para cada coisa debaixo do céu. Eclesiastes cap.3, Bíblia Sagrada.
E agora José? Referência ao Poema de Carlos Drummond de Andrade.







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