Demasiado inverno
- Susan Duarte

- 5 de jul. de 2022
- 3 min de leitura
Atualizado: 15 de fev. de 2023
Hemisfério sul. Brasil.
Mais precisamente no Rio Grande do Sul.
Inverno? Sim, demasiado inverno, e só chove.

Inventei uma lei no meu país. Sim, acaso você não saiba, sou meio Alice. Ainda criança, julguei deveras razoável decidir que, se ela tinha um país das maravilhas para chamar de seu, bem, eu também poderia ter o meu. Nada mais justo. Adendo encerrado. Prosseguindo. Uma das leis do meu país é esta: em dias de chuva, o treino de musculação vale por dois. Acredite: eu acredito genuinamente nisso! Algumas mentiras sinceras me interessam, cantava Cazuza, e graças a essa, hoje, com chuva (torrencial), frio, má vontade, guarda-chuva e mil desculpas na bolsa, eu fui treinar.
Treinei. Costuma ser horrível até chegar. Depois, bem, há dias em que é pior. Haha. Mas hoje não: melhorou (e muito) depois. Treino bem feito, caprichado, sem choro, terminado. Provida daquele estado de graça do pós-treino, provocado por uma chuva de neurotransmissores, olhei para a chuva que caía do céu lá fora outra vez. Só que dessa vez, com novos olhos. Ninguém soube, até agora, efetivamente explicar o que é esta tal felicidade. Mas que a Nossa Senhora da Serotonina&Endorfina opera milagres, disso, eu nunca duvidei.
Bem criada que fui pela minha abençoada mãe, óbvio, levei o guarda-chuva, desconsiderando nosso complicado relacionamento até então. (Com o guarda-chuva, não com a minha mãe, vale ressaltar). Acho graça da parte da nossa família que é portuguesa - por lá, eles chamam o guarda-chuva de chapéu de chuva. Isso mesmo: chapéu!
Gostei, pensei comigo à primeira vez. Talvez elevar o velho guarda-chuva, tão esquecido, tão perdido, tão ignorado, quebrado e facilmente substituído, à categoria de acessório faça-me, enfim, apreciá-lo...
Ledo engano: depois do primeiro temporal em Lisboa, percebi que nem o chapéu de chuva resolveria. Na saída da academia (em luso, ginásio), não sei dizer se foram os neurotransmissores, a linda paisagem de inverno ou um óculos mágico cor-de-rosa choque: de repente, dispensei a proteção, saí caminhando, e quando me percebi, eu estava sentindo a chuva. Mesmo. Juro que comecei a cantarolar: Raindrops are falling on my head and just like the guy [...]. Thanks, B. J. Thomas, I still loving you. Aqueles pingos gelados no meu rosto, escorrendo pela face, resfriando minhas preocupações, dissolvendo minhas aflições... Foi lindo! Me senti tal qual Don Lockwood, singin' in the rain, na cena clássica do musical Cantando na Chuva.

Nos verões da minha infância, era justamente no instante em que despencava um pé d'água que ficava mais divertido continuar na rua brincando, à despeito dos berros da mãe e do desprezo infantil às sérias ameaças de raios. Crianças sentem a chuva. Adultos também - acho que a gente só se esquece disso. Mais tarde, um ex-namorado costumava dizer quando éramos expulsos da praia por uma repentina chuva de verão: - É só uma nuvem, já vai passar, ponderava ele. Pensando bem, é assim que os adultos se relacionam com a chuva: esperando que ela passe, tal como uma nuvem, outro inconveniente qualquer do nosso lifestyle contemporâneo, cuja denominação e expressa ironia, por si só, já denunciam a redução da própria vida - amiudamente corrida&civilizada&vazia.
Dito tudo isso era apenas pra dizer:
Some people feel the rain. Others just get wet. Roger Miller.
Algumas pessoas sentem a chuva. Outras apenas se molham.
Cheguei muito molhada no meu destino seguinte à academia. Efeito colateral de quem escolhe viver sentindo a vida. Mas valeu a pena, porque hoje, feito Don, meio Miller, de novo criança, eu senti a chuva.
Até sempre,
Susan Duarte
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POOL DE REFERÊNCIAS
Alice no País das Maravilhas. Lewis Carroll. https://amzn.to/3IeKtqW
Cazuza, Canção Maior abandonado.
B. J. Thomas, Canção Raindrops Keep Fallin' on My Head.
Musical Cantando na Chuva, com Gene Kelly e Debbie Reynolds.
Frase de Roger Miller, american country singer.
Obra Chuva Serena. Liu Kojima, 2014.
p.s: B.J.! Te amo!








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