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Um requiem para o inacabado

  • Foto do escritor: Susan Duarte
    Susan Duarte
  • 11 de set. de 2022
  • 4 min de leitura

Adoro escrever sobre a vida.

E dela, a morte, irrefutavelmente, faz parte.


Dentro da vida se vive inúmeras mortes. Dentro do mesmo dia, da mesma manhã, da mesma hora, já morri e nem me percebi.

Quando acordei hoje de manhã eu sabia quem eu era, mas acho que já mudei muitas vezes desde então. Alice No País das Maravilhas.

Certa vez, estive numa cidadezinha bem pequena e charmosa no interior de Portugal chamada Batalha. Sua principal atração turística era o Mosteiro da Batalha, uma obra monumental e, pra minha surpresa, inacabada.


Sempre tive certo apreço por histórias não vividas, saudades não choradas, obras inacabadas, palavras não ditas, destinos recortados, e toda a sorte perversa de reveses pelos quais a alma humana pode ser tolhida. Devem todas essas morar numa espécie de bazar, onde os sonhos extraviados vão parar, tal como canta a moça do sonho de Chico Buarque.


O mundo moderno obcecado por resultado costuma denominar de fracasso aquilo que ficou inacabado. Só válida o sucesso, o bem acabado e, de preferência, quanto mais ornamentado melhor a fotografia para a rede social. Eu não. Há beleza no que foi. Há beleza no que é. E há beleza no subjuntivo - um outro tipo de beleza, mais melancólica, quase poética: o que poderia ter sido e não foi.


A palavra requiem, do latim, significa descanso. Descansos, no México, são as lápides que ficam pelas estradas e caminhos. Este é o meu requiem para o inacabado, meu jeito de deixar flores para todos os descansos de minha biografia até aqui. É preciso, também, contar aquilo que em nós ficou represado, um eterno hiato entre a volta dos que não foram e o desejo (impossível) de ir de volta para o futuro.

Era uma vez o que nunca aconteceu.

A minha história e a dele foi a história do que não foi. Do que não fomos; do que não vivemos, do que não fizemos. As histórias são assim. Há histórias sobre o que foram e aquelas sobre o que não foram. A natureza de uma história se expressa na sua força de ser contada. Até quando não é. Inclusive, quando não foi. Traçando um paralelo à saudade, nota-se idêntico fenômeno - há a saudade do que foi vivido e há aquela saudade do que nunca se pode viver.


A diferença entre ambas as modalidades é que, em suma maioria, a primeira é preferencialmente mais popular. Afinal, a segunda - as histórias que não foram - são cheias de vida, de potencial e com larga margem de escrita para grandes memórias, exceto por um detalhe: sobrou vida mas faltou espaço (no tempo) para vivê-la. Um ensaio que jamais superou o prefácio. Capítulos vazios de almas frias condenadas à distância. Um tipo de história triste porque não foi escrita, porque não fomos, juntos, escrevê-la. Essa é a nossa história - a minha e a dele.


E assim, ficamos para sempre à margem do vir a ser. Insisto em contar o que não foi vivido, aquilo que ficou em hiato, à margem do vir a ser por que, na verdade, não houve espaço nem chance para somente ser.


Para refletir


Morrer é nada, passado,

Mas a vida inclui viver

A morte multiplicada -

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O alívio de morrer.

Emily Dickinson


Para apreciar

A obra Morte e Vida, de Gustav Klint, revela a natureza paralela de ambas. Já pensei nelas de modo linear, sequencial, uma depois da outra. Hoje, sei que elas, em verdade, coexistem: quanto mais eu morro, mais eu vivo, para morrer novamente e, assim, renascer outra vez.

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Morte e Vida. Klint 1908.

Eis o fluxo da natureza vida-morte-vida. A vida acontece e ponto. A morte, porém, costuma ser a indesejada da festa, devido à armadura humana revestida de apego e resistência.


Para ouvir

Permita que a morte faça o trabalho dela. Deixe morrer o que deve morrer para, assim, deixar viver o que deve viver.


Como? Deixo algumas linhas, pistas que uso para elucidar meu próprio caminho.

Pense na sua vida e reflita suas pequenas mortes.

O que deve, em mim, morrer para eu dar mais vida ao que deve, em mim, viver?

Caso tenha uma história não vivida, uma obra inacabada, um hiato irreversível, uma saudade nunca sentida, promessas que se fez e não cumpriu, uma potência que jamais virou ato, um porvir que nunca brilhou à luz do sol, acolha, e talvez como eu, chore pelo que não foi, pelo que não se viveu.

Perdoe-se.

Sepultar esses descansos, ouvindo uma pavana, no compasso de um requiem consciente é uma maneira de reconciliar-se com o quase. Devidamente despedida dos meus hiatos, posso abrir espaço para o novo - uma nova página, um outro capítulo. Todo mundo merece a chance de escrever outra vez um novo era uma vez.

Escreva de novo. E dessa vez, pra acabar, fazer valer. Deixe ir o que não foi. E aceite:

É preciso morrer para dar nova vida.

Isso não sou eu quem diz - é a natureza da Morte e da Vida.

Própria e imperativa.


Até sempre,

Susan Duarte

Ceo & Founder Zeitgeist iD | A sua marca no espírito da época.

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REFERÊNCIAS

  1. Tela em canvas, Klint. https://amzn.to/3eDdFNw

  2. Livro. A morte é um dia que vale a pena viver. Ana Cláudia Arantes. https://amzn.to/3QBnJDV

  3. Livro. A morte de Ivan Ilitch. Tolstoi. https://amzn.to/3B7SMl7

  4. Livro. As intermitências da morte. Saramago. https://amzn.to/3dd98Ro


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