Far niente
- Susan Duarte

- 10 de jul. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 10 de fev. de 2023
Dolce far niente. Se não puder ser dolce, comece apenas pelo far niente.
É através do nada que se revela a trilha para o silêncio.
Para refletir
Na última semana, estive revirando uns livros, diários, memórias e afins. Dentre essa beautiful mess reencontrei a minha definição preferida de silêncio.
"A maior parte do tempo, porém, o que nós partilhávamos era o silêncio. E isso eu aprendi contigo, porque não sabia. Para mim, o silêncio era sinal de distância, de mal-estar, de desentendimento. Ao princípio, quando ficávamos calados muito tempo, eu sentia-me inquieta, desconfortável, e começava a falar só para afastar esse anjo mau que estava a passar entre nós. Um dia tu disseste-me:
- Cláudia, não precisas de falar só porque vamos calados. A coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas é o silêncio." (p.95). No teu deserto.
Não dá para apreciar mais essa definição tua, Miguel. Se o silêncio já é missão (im)possível entre dois, quiçá, a sós. Silenciar a dois é bonito e difícil; a sós é perturbador e torturante.
Exagerada, eu? O ano é 2022. Imagine prescindir das notificações em nome do silêncio em si mesmo, consigo mesmo... Conseguiu? Pois é. Não estou falando de meditação. Vale traduzir, contudo, o termo budista zazen: sentar em silêncio. Simples? Só se for de digitar. De certo que meditar colabora com esta perturbadora tarefa - o silêncio contemplativo, proposital, intencional, quase um dolce far niente italiano. Aprendi esse dolce far niente com a minha amiga italiana, aquando moramos juntas na altura do nosso Erasmus/Intercâmbio. Ela me fazia sentar, numa toalha no chão, em silêncio, e pasme!, sem FAZER nada! Eu quase enlouquecia. Se fazer nada para os italianos é um momento doce, para os ocidentais mais frenéticos (like me) é torturante.
Gosto muito do termo sociedade do cansaço, de um autor coreano, ainda que desgoste de sua cosmovisão esquerdista, meio herdeiro de um tal argentino, CheGuevara. No livro, Byung-Chul resgata o conceito grego de contemplação, a vita contemplativa em oposição crítica à vita activa, daquela que ele denomina de sociedade de desempenho.
No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas. [...]. Sem esse recolhimento contemplativo, o olhar perambula inquieto de cá para lá e não traz nada a se manifestar. Sociedade do Cansaço, (p.37).
A essa altura, você deve estar pensando que não há nada mais fácil do que far niente, fazer nada. Ledo engano. Poderia ser fácil para a sociedade ateniense, mas não o é numa sociedade exaurida como a nossa, que desaprendeu a potência negativa. A potência positiva é aquela de fazer alguma coisa; a negativa é a de não fazer. Numa sociedade cansada de tanto ser produtiva, o far niente, o nada fazer, incluso na potência negativa, é mais difícil do que eu poderia descrever em parcas linhas. E acredite, o enredo só piora diante da (ilusória) premissa do zeitgeist pós-moderno - a associação de que quanto mais produzir, mais feliz você será.
É muito barulho por nada, não é Shakes? (Meu vocativo pessoal e carinhoso para o meu britânico favorito, William Shakespeare.) Sócrates, outro grego, advertiu há alguns séculos: tome cuidado com o vazio de uma vida ocupada demais.
Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Só existimos quando fazemos. Nos dias em que não fazemos, apenas duramos. Pe. Antônio Vieira.
Padre Antônio adivinhou o espírito de nossa época, quase metafísica a sua previsão. Apesar de ser uma entusiasta natural do fazer, aprendi com a vida, que vez ou outra, somente durar é o melhor que se pode fazer.
Para apreciar A obra "A sesta" de Van Gogh é uma boa ilustração do conceito grego de vita contemplativa, do italiano dolce far niente, do silêncio a dois de Miguel.
Será que estamos tão cansados justamente porque desaprendemos a descansar?
E não: descansar não é maratonar Netflix, 3h de scrolling nas redes sociais, tampouco 4h numa balada qualquer e barulhenta.
Refiro-me a descanso de qualidade. Em termos práticos: sente-se na sua sala, no parque, em silêncio. E permaneça ali. Vença o desassossego contemporâneo de ter de fazer, produzir, render o tempo todo. Experimente apenas ser. Só ser.
Repito e enfatizo: somente ser.
Não é pra ser produtivo, ser engraçado, ser perfeito, ser quem finge ser. Não. Seja o que se é.

Talvez você sinta saudade de apenas ser, e já não tenha tempo sequer para percebê-la, quiçá, para senti-la. É lá longe, no silêncio, neste reino tão-tão distante, que eles estarão - a sua saudade de ser junto àquele/àquela que você realmente é.
Para ouvir
Hoje, ouça apenas o seu silêncio.
Escute-se. E nada mais.
Simples? Não por isso.
Fazer nada. Sentar em silêncio. Em estado de potência negativa. Um momento de acordar os sentidos, simplesmente estar comigo, sem estar exausta, dormindo, ocupada, distraída; apenas disposta, desperta, em silêncio.
Silêncio é um momento de ser e estar em presença consciente.
Aproveite o domingo. Respire. Fundo.
Tente só ser, apenas durar.
E silencie.
Que seja dolce o seu far niente!
Até sempre,
Susan Duarte
Ceo & Founder Zeitgeist iD | A sua marca no espírito da época.
©Copyright 2022 Zeitgeist iD.
POOL DE REFERÊNCIAS
No teu deserto. Miguel Sousa Tavares. https://amzn.to/3nUWDff
O que aprendi com o silêncio. Monja Coen. https://amzn.to/3c7rUcl
As coisas que você só vê quando desacelera. Haemin Sunim https://amzn.to/3yUislc
Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han. https://amzn.to/3PkEnY7
Obra de Van Gogh. https://amzn.to/3RnKUmV








Comentários