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O espelho

Susan Duarte
7 de ago. de 2023
4 min de leitura

Atualizado: 8 de ago. de 2023

O espelho é um instrumento. Reflete o que é e aquilo que não é. Revela o que se admira, bem como aquilo que se renega. Sua função é a delação nada premiada da verdade e da mentira, do belo e do feio, da luz e da sombra.

Espelho é instrumento de contraste. E todo contraste serve à geração de mais Consciência. Afinal, só me sei feliz porque conheço a tristeza; só me compadeço do sofrimento alheio porque conheço a hora mais escura da alma. Sem a dualidade jamais se atinge a profundidade, aquela realidade que só se alcança no rio abajo rio, o rio por debaixo do rio.

Quem me dera, ao menos uma vez, que o mais simples fosse visto como o mais importante. Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente. Renato Russo

Por quê o espelho nos adoeceu, Renato? Há muitos espelhos falsos por aí. Machado de Assis também fez uso de tal instrumento na exposição de sua tese sobre a alma humana, brilhante em seu conto O espelho.

A criatura humana tem 2 almas: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro. Machado de Assis

O espelho pode ser fonte de egocentrismo, autorreferência excessiva, feito Narciso que morreu afogado em si mesmo.

Dorian Gray, a versão inglesa do mito de narciso, entorpeceu-se de paixão pela própria imagem ao ponto de decidir vender a sua alma em troca da eterna beleza e juventude. Novamente, o espelho foi o protagonista da obra de Oscar Wilde.

Cada um de nós, Basil, tem em si o céu e o inferno, disse Dorian.

O retrato de Dorian Gray. Oscar Wilde, 1890.

Imagina só se Dorian e Narciso tivessem vivido no zeitgeist do Instagram! Teriam enlouquecido ainda mais.

Hahaha.

O espelho pode ser vaidade, feito a bruxa da Branca de Neve que mandou matá-la quando o espelho lhe disse que ela já não era a mais bela do reino.

O espelho de Vênus. Edward Burne-Jones, 1887.

Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu? Conto da Branca de Neve.

A Branca de Neve colorida de Romero Britto.

O espelho de Renato Russo, de Machado de Assis, de Narciso e Dorian Gray, da bruxa da Branca de neve, do reflexo de Vênus - são todos esses sentidos e usos de regência egoica para o espelho.

A Consciência, contudo, modifica a sua utilidade. Na regência consciente, o espelho é fonte de autoconhecimento, compaixão, compreensão. E, inclusive, nela, o espelho reflete o relacionamento humano.

Tat tvam asi.

É o sutra hindu do "espelho do relacionamento". Revela o auto(re)conhecimento. Em sânscrito, significa "eu sou aquilo". Em profundidade, é me ver e reconhecer em todas as coisas e pessoas e circunstâncias ao meu redor.

O outro é caminho para revelar no espelho o que, em mim, ainda se encontra oculto de mim. Antes de, apressadamente julgar o outro, tenho conseguido dar um passo atrás, olhar no espelho, e me perguntar o que ele veio me revelar - não sobre ele, mas sobre mim.

"Certo homem entrou em um vilarejo e procurou o mestre sufista, ancião sábio local. O visitante disse: - Estou resolvendo se devo ou não me mudar para cá. Tenho curiosidade de saber como a vizinhança é. O senhor pode me falar como são as pessoas daqui? O mestre indagou: - Descreva-me o tipo de pessoas que moravam no lugar de onde você vem. Ele respondeu: - Oh! Eram assaltantes, trapaceiros, mentirosos. O velho mestre declarou: - Imagine só. As pessoas que moram aqui são exatamente iguais a essas. O visitante deixou o vilarejo e nunca mais voltou. Meia hora depois, outro homem chegou à aldeia. Procurou o mestre e disse: - Estou pensando em me mudar para cá. O senhor pode me descrever como são as pessoas que moram aqui? - Que tipo de pessoas moravam no seu lugar de origem?, perguntou o mestre. O visitante respondeu: - Oh, eram extremamente bondosas, delicadas, compassivas e amorosas. Vou sentir uma enorme saudade delas. O mestre declarou ao final: - As pessoas que moram aqui são exatamente assim."

Particularmente, tenho usado os espelhos que me cercam de outro modo. Eles seguem sendo úteis para pentear o cabelo, alinhar a roupa, e conferir se não vou assustar as pessoas na rua com uma cara de louca. Mas agora sei que, olhar e ver o que revela o "espelho do relacionamento" me faz alcançar estados de consciência expandidos.

Quando me vejo no outro, ele me revela aspectos de minha luz e de minha sombra. (Re)conhecer-se no outro, no próximo, é um caminho para o verdadeiro autoconhecimento, uma via que catalisa o despertar e a expansão da Consciência que sou.

Quando Pedro fala de Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo.

Da próxima vez que se admirar ou colerizar em razão de algo ou de alguém, dê um passo atrás, olhe no espelho do relacionamento, e tenha um coração disposto e olhos corajosos para perceber o elemento refletido.

Olhando no espelho, agora na Consciência de Tat tvam asi, só me resta dizer: